- é!! ainda me lembro quando ainda me lembrava e dizia-te...
- do que te lembras então??
- qual das duas??
- da última, para começar...
- de quando, quando em vez, tínhamos hora marcada para nos lembrarmos...
- mas de que coisas??
- de todas!! das coisas que nos aconteceram... das coisas que fazíamos... dos pormenores... dos "Ah ya pois era"... até dos ""poizéra" ou "poijéra""?...
-Poijéra!!
- (sorriso) era não era!? e quando nos íamos lembrando sempre ia redescobrindo o timbre da tua voz, os balanços da tua inquietude e o respirar da tua alma...
- isso tudo ao telefone han?!?
- e mais... sempre depois das 21h... mais uma hora que ninguém desconfia...
- isso parece já mais que passado...
- sim... as memórias vão se esbatendo não pelo esquecimento, mas porque sempre que me lembro de alguma, falta qualquer coisa que completo com outra coisa... depois chego a um ponto que já não sei o que foi verdade ou imaginação... é curioso quase tanto como é cruel... às vezes fico naquela "mas era cor de salmão!! era?? acho que era... tenho quase a certeza que era... mas a lua era cheia isso não há dúvida... lembro do reflexo da luz na água... tipo montes de pedaços de um espelho partido"... depois vou mais fundo e lembro do sentimento... não só da paixão, de tudo... de culpa... de perda... de euforia... de revolta... de tristeza... e de mais... de tudo...
- nunca pensei nisso assim... se bem que pensei em muito do que dizes mas não dessa forma...
- eu e a minha forma do drama e do horror de lembrar...
- sim, tens queda para o dramatismo... embora seja mais porque queres...
- um dia disse-te que escrevia para poder lidar com os meus demónios... para não esquecer... para não me desligar... mas é ao contrário... acho que quanto mais escrevo mais me emaranho nas coisas... já nada é claro como a água... há sempre subterfúgios... jogadas... e até vários jogadores num só...
- sempre escreveste bem... e eu sempre gostei de te ler.. mas se sentes que te faz mal...
- tu também já escreveste... eu sei... e rapidamente percebeste aquilo que eu finjo não perceber...
- o quê?
- escrever sobre ti, ou escrever porque me lembro de ti... é como te beijar...
- (silêncio)
- o tempo vai passando e eu acho que acertei em tudo o que iria acontecer... e entretanto lembrei-me de uma noite de Verão em que pura simplesmente não se conseguia manter uma distância sociável... como é possível sentirmo-nos dessa forma? quase irreal...
- "dá um passo atrás!" (sorriso) então mas diz lá acertaste ou não...
- acertei em quase tudo...
- e qual o quase em que não acertaste??
- lembraste de eu te ter dito que um dia ias olhar para trás e achar que afinal até não foi assim tão especial??
- lembro-me...
- acho que um dia vais olhar para trás e nem sequer achar... vais só saber... como um facto... um facto histórico... e , das primeiras vezes que olhares para trás até podes tentar lembrar e de certa forma reviver... mas vai doer... e vais deixar de o fazer como reflexo em resposta à dor... assim como deixaste de escrever... então olharás mas evitarás remexer nas coisas e cenas... e um dia vais olhar e não vais ver assim grande coisa... e depois só vais olhar quando algo te o obrigar a fazer... tipo uma música ou um local... ou até um luar... e depois já nem sequer vais olhar... e algures um dia haverá um fim e nada do que existiu alguma vez existiu...
- (uma lágrima) o que é que queres que eu te diga...
- oh... diz-me boa noite...
- assim sem mais nem menos???
- não é boa altura para lembranças mas lembraste de todas as vezes que nos tentamos despedir um do outro?(sorriso)
- (sorriso) (silêncio) Boa noite...
- Boa noite...